Sobre religião, poder da mídia e tecnologia

Por Renato Silvestre

O avanço da tecnologia e, principalmente, de mecanismos que possibilitaram o crescimento da relevância da mídia na vida das pessoas, fez com que a forma de interação entre a sociedade e as instituições religiosas passasse por transformações e por readaptações próprias da condição humana. Aos poucos, os detentores do poder religioso também começaram a ver nos avanços da tecnologia midiática uma ótima possibilidade de chegar mais rapidamente aos corações e mentes de seus fiéis.

O rádio no Brasil talvez tenha sido a primeira grande ferramenta de interação midiática das igrejas com seus seguidores. Lançado em 1929, nos Estados Unidos, o Programa a Voz da Profecia, produzido pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, chegou ao Brasil em 1943, sendo transmitido por 17 emissoras para diferentes cidades do país. O programa é considerado o primeiro do gênero, em âmbito nacional no rádio brasileiro. Obviamente, em menor escala, em muitas pequenas cidades brasileiras historicamente sempre houve nas rádios locais os chamados momentos de oração, onde famílias inteiras acompanhavam com afinco as preces diárias, geralmente, com uma abordagem católica.

O crescimento dos meios de comunicação resultou no papel fundamental da televisão como um dos principais, se não o único meio de informação, para boa parte da população. Hoje, temos emissoras que dedicam toda a sua programação a conteúdos religiosos e até contam com certa estruturada profissionalizada, como é o caso da Rede Vida e da Canção Nova.

Paralelamente também há igreja, como a Universal do Reino de Deus, que investiu e ainda investe pesadamente em seu canal de TV, no caso a TV Record, disputando de igual para igual com outras emissoras, com conteúdos populares e não religiosos, mas sem é claro não deixar de reservar espaços para propagar sua crença. A Universal possui ainda materiais impressos e espaços na internet que se utilizam de todas as mais modernas ferramentas de interação.

Em última instância, navegando pela internet e principalmente pelas redes sociais, não podemos deixar de perceber a enorme quantidade de perfis de usuários atrelados aos mais diversos grupos religiosos e que usam do alto potencial de alcance destas novas mídias como verdadeiros megafones de seus interesses.

Criam-se seguidores virtuais que podem tornar-se reais e juntam-se os reais em outra esfera de discussão que não somente os templos. Observa-se claramente que as igrejas (leia-se todas e as mais diversas) passaram a ver na mídia um campo altamente produtivo, e nas redes sócias um espaço ideal para colocação de seus ideias e para a aproximação com pessoas diversas, que talvez jamais ousassem adentrar fisicamente neste ou naquele templo religioso.

O Papa João Paulo II, certamente uma das figuras mais emblemáticas do século XX, é um exemplo desta interação entre religião, mídia, poder e tecnologia. Durante seu papado a Igreja Católica buscou abrir-se e sua própria figura foi ostensivamente reforçada na mídia. Seus passos eram seguidos por centenas, talvez milhares de jornalistas de todos os cantos do Planeta e a sua presença no país X ou Y sempre virava notícia. Parafraseando o cantor gaúcho Humberto Gessinger, “o Papa virou Pop”.

Nesta trilha, Padres começaram a aparecer em programas de TV, produzir e atuar em filmes e gravar CDs, vide Marcelo Rossi. O atual Papa da Igreja Católica Apostólica Romana, também tenta não ficar pra traz. Prova disso é que há quase um ano, em 29 de junho de 2011, Bento XVI twitava pela primeira vez utilizando um iPad.

Além das lideranças religiosas, tal e qual no campo político, há a militância religiosa que age pesadamente na internet, buscando cada vez mais seguidores e iguais, que possam neste território ainda pouco explorado caminhar juntos levando suas mensagens e crenças.

Podemos observar que as redes sociais digitais mostram-se como verdadeiros espelhos da sociedade contemporânea e os religiosos, como parte dela, mostram-se e usam deste espaço na tentativa de conquistar novos adeptos, indo exatamente onde as pessoas buscam cada vez mais se mostrarem, construindo identidades nem sempre compatíveis com as reais. A busca por fiéis sai somente do campo físico e chega ao virtual, almejando-se o espiritual.

Os próximos passos deste processo ainda não são conhecidos, mas pode-se afirmar que o futuro da religiosidade ou espiritualidade quase que certamente passará pela tecnologia midiática de celulares, tablets, notebooks e afins. Uma bela de uma contradição para quem usa velas de cera nos mais variados ritos e rituais. A religião para manter-se como fator de peso na sociedade mais do que nunca precisará apelar ao Deus da mídia e da tecnologia.

Tensão e constrangimento na saída do casulo

Por Magno Viana

No filme “Medos Privados em Lugares Públicos”, lançado em 2006, sob a autoria e direção do cineasta francês Alain Resnais, e tendo como protagonistas os atores: Andre Dussollier, Lambert Wilson e Pierre Arditi, e as atrizes: Isabelle Carre, Laura Morante e Sabine Azéma, apresenta uma interconexão entre personagens que interagem em dupla, e raramente em trio, em diferentes situações durante a trama.

Thierry (Dussollier) exerce a profissão de consultor imobiliário. Trata-se de um homem solteiro e na terceira idade que reside com a irmã Gaëlle (Carre) uma jovem solitária que possui um hábito curioso e perigoso, gosta de conhecer pessoas estranhas, após contatos via internet. A corretora Charllote (Azéma), colega de trabalho do Thierry, que também cuida de um idoso, pai de Lionel (Arditi), embora seja cristã, o que fica bem explícito no enredo, aprecia o auto strip tease, inclusive grava suas performances e as presenteia aos amigos.

O enredo se desencadeia na Paris contemporânea, em um período de bastante inverno. Enquanto a neve continua caindo, os fatos vão sendo descortinados. O corretor mencionado é contratado pela noiva Nicole (Morante), a qual pretende oficializar a união com Dan (Wilson), que está desempregado, e não demonstra interesse em voltar a trabalhar. Ele tem como confessor o barman Lionel, cujo pai recebe os cuidados de Charllote.

A produção cinematográfica retrata acontecimentos do cotidiano que nem sempre podem ser observados ou comentados. Fatos que as pessoas em geral procuram não demonstrar e desejos que os humanos se esforçam por dissimular. O filme também apresenta eventos comuns, porém dentro de um contexto atraente, pelo fato de ficarem abertos no final da trama, mas, no decorrer da exibição são pontuadas virtudes e deficiências congênitas de todas as pessoas, independentemente da nacionalidade, profissão e intelectualidade.

Tanto no comportamento de Charllote que gosta de se despir diante da câmera, como na fraqueza de Dan que ao invés de procurar emprego se embriaga, vê-se uma semelhança de atitudes aparentemente inadequadas e condenáveis, mas, que na maioria das vezes não são assumidas publicamente. Assim como a apreciação de Thierry pelas fitas nas quais a colega se apresenta não é bem vista por sua irmã, a sociedade dita conservadora também não aprova, pelo menos abertamente. Contudo, Gäelle julga o irmão, mas faz algo um tanto arriscado e não confessado nem mesmo para a única pessoa com a qual mora, se encontra com pessoas desconhecidas em lugares públicos.

Nicole alimenta esperança em uma união visivelmente fadada ao fracasso. Pretende consolidar enlace com Dan, que se mostra alheio às responsabilidades de homem e marido. Em um momento de desespero e ódio, a noiva resolve romper, mesmo com o coração sangrando. Será que até agora foi narrado algum fato inusitado? O sucesso da trama consiste exatamente no transporte do comum e do não revelado para as telas do cinema.

Resnais trabalha as duas faces dos protagonistas, que podem ser consideradas de toda e qualquer sociedade: a revelada e a encoberta. Hábitos costumeiros e absolutamente confessáveis como: vender imóveis, cuidar de idosos e ser barman, e também esquisitices, fetiches e defeitos: curiosidade por contatar pessoalmente homens até então só conhecidos por sites de relacionamento, exibição do corpo desnudo e falta de foco e motivação para o trabalho.

Assemelhando o filme com o livro “Admirável Mundo Novo” do escritor britânico Aldous Huxley, pode-se perceber uma coesão de acontecimentos. Se no filme existe a catalogação de pessoas em diferentes ângulos que se correlacionam. No livro mediante a personagem Helmholtz Watson, o autor trabalha os dilemas de um homem que não sente prazer nas práticas comunais, e procura algo novo para dizer e fazer, mas, se no filme as personagens já sabem o que querem fazer fora da rotina, Watson, ao contrário, ainda não descobriu.

“Esse admirável homem… sociável, percebera de súbito que o esporte, as mulheres e as atividades comunais [eram coisas] de secundária importância. Na realidade interessava-se por outra coisa. Mas pelo quê?…” (HUXLEY, p.116). A busca pelo novo, pelo sentido da vida e pela felicidade plena perpassa todos os contextos apresentados, talvez a significação da existência habite o anseio seguido de encontros e frustrações na curiosidade e expectativa pelo incógnito.

Fotografia digital: A tecnologia como o fim da criação artística e a nossa relação com a imagem

Por Alessandra Rios

Já foi a época em que a arte de fotografar tinha o seu glamour, ou melhor dizendo, era “mais artística”. Com a chegada das máquinas fotográficas digitais, especialmente as mais modernas, acopladas ao celular, o conceito de fotografar e a nossa relação com as imagens mudou no mundo inteiro. Para sempre.

A fotografia surgiu no inicio do século XIX, e era dedicada, anteriormente, a eternizar as famílias. Tirar uma foto, naqueles tempos, era um grande evento: os adultos e crianças tomavam banho, numa época em que a higiene diária não fazia parte de seus hábitos; eram escolhidas as melhores roupas; as mulheres escovavam os cabelos, os homens engraxavam os sapatos. Cada detalhe era perfeitamente cuidado, afinal, o registro ficaria para a história.

Com o tempo, a máquina fotográfica foi se popularizando e a tecnologia se tornando mais barata e acessível às pessoas. Ainda com a função de registrar momentos, as famílias adquiriam máquinas fotográficas e filmes de 12, 24 ou 36 poses – o que já era considerado um exagero – para eternizar eventos considerados importantes, como a festa de aniversário dos filhos ou uma viagem de férias.

Eis que um belo dia, a tecnologia permite o advento da máquina fotográfica digital.
Antes, a dúvida entre a escolha de um filme em PB (preto e branco) ou colorido pode
agora ser resolvida na própria máquina digital, ao girar um botão para lá ou para cá.
O novo suporte da fotografia já não é mais o papel e sim os HD’s dos computadores
cada vez mais abarrotados, esperando pela revelação de álbuns que nunca ocorre.

Na fotografia digital, o filme já não é mais o limitador da quantidade de registros como era na analógica. Não gostou da foto? Nem precisa apagar; faça outra e mais outra…
e ainda outra. Quantas forem necessárias (ou desnecessárias).

E, em meio à facilidade de apagar e refazer, editar e reeditar as fotografias, os fotógrafos (tanto amadores, quanto profissionais) estão apontando suas máquinas para todos os lados, sem um mínimo de senso crítico e sem parar para perguntar o que se quer fotografar. O foco da fotografia deixa de ser os eventos importantes e passa a ser qualquer coisa que eu deseje, principalmente eu mesmo, com meus auto-retratos. Resultado: milhares de fotos repetidas e muitas vezes desprovidas de sentido que, quando não esquecidas em uma pasta qualquer do HD, por excesso de imagens acabam gerando desinformação. Lembramos, aqui, da velha teoria da Iconofagia, de Norval Baitello Junior: “somos nós quem devoramos as imagens ou são elas que nos devoram”?

O problema maior surge quando a falta de senso crítico parte para o campo profissional. Com as inúmeras possibilidades técnicas da máquina fotográfica, há quem ande por aí brincando de ser fotógrafo e pior, há muitos comprando essa ideia! O dom artístico de compor e criar a imagem fotográfica se confunde com as possibilidades dos “efeitos mágicos” que as câmeras são capazes de criar. Perde-se a referência do que é e do que não é artístico.

Máquinas fotográficas cada vez mais avançadas com controles automáticos aperfeiçoados, softwares de edição capazes de controlar brilho e contrastes, saturação, efeitos de borda e tantas outras coisas parecem fazer milagres e tem servido de armadilha até mesmo para os fotógrafos profissionais, além de cegar muitos para os limites entre o profissional e o amador e entre o artístico e o esdrúxulo tecnológico. Isso se nota, principalmente, com o uso das máquinas
fotográficas acopladas aos iPads, iPhones etc, onde câmera está praticamente em todos os lugares e o tempo todo ao alcance do usuário e da rede, pois o compartilhamento dessas imagens, sobretudo nas redes sociais, alcançou uma velocidade surpreendente e é outro fenômeno a ser observado.

Não é o caso de assumir uma posição partidária ou apartidária ao lado da máquina fotográfica digital e softwares de edição. A verdade é que a fotografia digital mudou, irreversivelmente, a nossa forma de nos relacionarmos com as imagens. E aí se faz necessário compreender: nesse jogo, quem é funcionário de quem. As máquinas são nossas funcionárias ou nós é quem somos funcionárias delas? Esse é o dilema de Vilém Flusser, em sua Filosofia da Caixa Preta.

A fotografia digital tem seus inúmeros benefícios e seria ingenuidade deixar de reconhecê-los, a questão é: estamos fazendo da máquina fotográfica e dos programas de edição o meio ou o fim da criação artística?

O Eu realizado?

Por Magno Viana

Valére Tasso personagem da atriz espanhola Belén Fabra, no filme “Diário Proibido”, estreado em setembro de 2009, sob a direção de Christian Molina, é uma moça que teve bastante afinidade com a avó Granny, personagem de Geraldine Chaplin, filha do cineasta Charles Chaplin. E, nos últimos momentos da vida esta faz uma retrospectiva de tudo o que viveu e descobre que, apesar de ser admirada pela neta por ter vivido uma linda e longa história de amor com o marido, se pudesse voltar no tempo deixaria outro enredo para os descendentes.

Ela afirma que ao invés de ter conhecido um único homem, gostaria de ter sido possuída por vários. Realizaria diversos desejos e provaria muitas experiências. Valére observa Granny atenta e reverentemente, como se por trás da revelação houvesse mensagens subliminares fortes e indispensáveis. Com o subsequente falecimento da avó, Valére conclui que o melhor que ela tem a fazer é viver realizando os desejos mais íntimos. Ela se revela uma verdadeira ninfomaníaca. Desiste de repetir a história dos antepassados, e passa a contrair relações sexuais com muitos parceiros.

Depois de algum tempo tem a oportunidade de conhecer um empresário bem-sucedido que se apaixona por ela e a pede em casamento. Ao ser seduzida pelo intenso romantismo, Valére se casa. Pela vasta experiência sexual que ela demonstra ter, o marido fica extremamente enciumado, e transforma a vida de ambos, principalmente a dela em um pesadelo. Quando se separa dele ela resolve ser prostituta. Tinha curiosidade sobre este universo, e também ia fazer o que mais gostava, sendo beneficiada financeiramente.

Ao começar a fazer programas ela se envolve, mas consegue mostrar competência. É humilhada por cliente, e descobre que chegou a hora de deixar de ser marafona. Valére é uma mulher que vive a liberdade da forma que a concebe. Fazendo o que considera certo, e até quando convêm. Sofre mas, não tem pena de si mesma. Em um brusco momento de insanidade pensou que o suicídio fosse o escape ideal para se livrar do ex-marido que não aceita a separação. Contudo resolve lutar pela vida sem constrangimento nem mediocridade, muito menos observando paradigmas sociais.

Uma história para ser contada e analisada, acredita-se, sem preconceito nem julgamento de valor. Todavia, para uma repentina reflexão, talvez caiba uma pergunta: Até onde a liberdade torna o ser humano realmente livre? Não se sabe ao certo se as mulheres mencionadas no livro “Admirável Mundo Novo”, 1932, do escritor britânico Aldous Huxley, assim como Valére, sentem-se completas com a permissividade a que se outorgam. Isso também pode ser de menos importância investigando os dois casos dentro dos contextos nos quais ocorrem: no filme existe uma ninfomaníaca cheia de curiosidade, no livro apresenta-se uma sociedade onde tudo é permitido.

A obra de Huxley descreve, entre outras coisas, o comportamento de duas personagens femininas denominadas Lenina e Fanny Crowne. Elas pensam que é terminantemente vedado o uso do termo proibir. Fazem sexo com uma quantidade diversificada de homens, pois, acreditam que a promiscuidade é uma virtude absolutamente necessária aos seres civilizados. “O elevador estava cheio de homens… e a entrada de Lenina foi acolhida com… sorrisos amistosos. A jovem [já]… havia passado a noite com quase todos eles. (HUXLEY, p. 103)”.

O escritor mostra que os homens também se permitem viver uma intensa promiscuidade, o que não impressiona tanto, senão por um caso citado, no qual uma personagem supera até mesmo um monarca dos tempos bíblicos chamado Salomão. Se este teve 1000 (mil) mulheres durante toda a vida, Helmholtz Watson, um campeão de Pelota-Escalátor, é declarado como possuidor da fama de amante infatigável, por ter feito sexo com 640 (seiscentas e quarenta mulheres) em menos de quatro anos (p.116).

No filme e também no livro, percebe-se o desejo de florescimento do Eu. Eu enquanto homem, mulher, ser humano, ser apreciador dos desejos libidinosos, com qualidades e defeitos, vontades e manias. Eu totalmente desprendido de dogmas e recalques, à procura, provavelmente, da própria essência. A busca do âmago, talvez seja permanente, ainda que não ininterrupta. O caminho para a descoberta pode ser múltiplo ou específico, a depender do perfil de cada examinador.

As personagens citadas fizeram o que reputaram melhor. Desta forma, a coragem as transforma em seres ativos dentro de determinado circuito da existência. Não se pode asseverar que foram mais felizes que os menos audazes. Se a oportunidade de conquista da auto realização for única, e for comprovado que o conceito de satisfação independe do certo ou errado, posto ser esse julgamento, realmente subjetivo. Consequentemente todos agarraram a felicidade por terem saciado o desejo.

A aceitação do ser ou o que ele pode ser…

Por Magno Viana

No filme “Um Método Perigoso” (trailer abaixo), exibido em primeira mão no Festival de Veneza de 2011, com direção de David Cronenberg e protagonizado por Keira Knightley, Michael Fassbender e Viggo Mortensen, trabalha-se o estranho comportamento da paciente russa Sabina Spielrein (Knightley). Ela apresenta transtornos mentais que a levam à autodestruição. O médico, Carl Jung (Fassbender), que a atende em uma clínica de Zurique, pesquisa a fundo para entender a história dela e apresentar um diagnóstico e antídoto.

Mediante o diálogo e viagem retrospectiva o psicanalista acredita que encontrará respostas para o sofrimento de Sabina, pois ela vive afetada pelo sentimento de culpa, histeria e esquizofrenia. Pretendendo oferecer um tratamento eficiente, Jung procura Sigmund Freud (Mortensen), o pai da psicanálise, e expõe o caso. Este acredita que o cerne da questão reside na sexualidade, e que todo ser humano é o que nasceu para ser. Desta forma, cabia ao profissional auxiliá-lo no processo de auto aceitação, para que a pessoa em tratamento pudesse fazer o que desejasse e relacionar-se tanto pessoal como profissional e sexualmente com quem e da maneira que escolhesse.

Entretanto, Jung percebia o problema na não descoberta do homem sobre o que ele poderia vir a ser. Sendo assim, mesmo na condição de discípulo de Freud, ele discordava do mestre. O primeiro era protestante e o segundo, judeu. Este fato originava divergências além de conceituais e profissionais, religiosas. Que influenciavam o tipo de terapêutica disponibilizado por eles aos doentes. Mesmo considerando a profundidade e relevância das teorias freudianas, Jung via no mestre manipulação e inflexibilidade inaceitáveis. Mas Sabina, que mais tarde foi atendida também por Freud, concordava com este. Ela concebia a solução para os transtornos na auto aceitação.

A principal razão do rompimento entre os dois especialistas foi a discordância acima citada. Todavia, tanto em um como em outro se constata a predominância de sentimentos sombrios. Em Freud a vaidade profissional, e em Jung, o orgulho religioso. Este, porém, ainda que ocultamente, por causa da religião e do casamento, passa a utilizar-se de técnica até então inusitada, pelo menos na área médica. Estuda o caso de Sabina recorrendo ao sexo, inclusive com práticas sadomasoquistas: (durante o ato sexual ele a agredia com palmadas e cintadas, e ambos sentiam prazer).

É interessante ressaltar que, pelo menos o discurso de Jung se assemelha ao de Aldous Huxley. Quando este contesta o mundo real no livro “Admirável Mundo Novo”. O ideólogo aponta um panorama organizacional de sociedade que difere bastante de tudo que tem sido presenciado e noticiado. Na perspectiva por ele apresentada seriam extintas as convenções sociais: famílias, fidelidade entre parceiros sexuais, possibilidade de oscilação entre classes, ascensão e declínio de indivíduos e empresas e restrições referentes ao uso de drogas. No Mundo Novo existiria o condicionamento pré-natal, ensino durante o sono e a euforia provocada pelos entorpecentes.

Freud não pensava outra sociedade, ele cogitava e investia teoricamente na compreensão daquela que conhecia. Jung e Huxley, ainda que percorrendo caminhos distintos, vislumbravam o que poderia, segundo eles, se tornar realidade. Aceitar-se como é ou direcionar a vida para a incorporação do vir a ser é o dilema-chave tanto do filme como do livro. Ponderando o assunto,atribui-se importância acadêmica e psicanalítica sem precedentes para os dois posicionamentos.

Outrossim, precisa-se consolidar antes da busca pelo vir a ser, a compreensão do que já se tem como concreto. E, atentando para a comparação entre os pontos de vista abordados, emerge a seguinte interrogação: Em qual situação as pessoas permitem a expressão do espírito criador, e expõem livremente anseios íntimos sem recalque ou censura alheia? E, finalizando, desponta mais um questionamento: Em que modelo existencial o ser humano sente-se verdadeiramente feliz consigo mesmo e com a condição social em que está inserido, enquanto vida, cidadão e ser pensante e participante?